um projeto audiovisual imersivo, percorre casas e comunidades caiçaras do litoral fluminense e paranaense, em busca da música, do cotidiano, da espiritualidade, da terra, dos modos de vida e todas as questões que atingem o caiçara contemporâneo.

04/08/2009

A BORDO: VIAGEM DE CANOA 2009

Texto-reportagem: Manú Sobral- Fotos: Letícia Ayumi e Elaine Duarte Martins

Ilha das Peças. Litoral paranaense. Ali, tudo começa. 6 e meia da tarde de uma terça-feira qualquer, estávamos sentados em pequenos grupos rodeados de sacos de cimento vazios, a costurar pedaço por pedaço, usando linha de pesca azul, os sacos unidos transformando-se em velas que nos dias seguintes, seriam nossas cúmplices e nosso alívio nas horas em que o vento vinha; a viagem de canoa e voga duraria 17 dias, 180km foram percorridos pelo mar aberto, braços de mar e rios em forma de serpentes.
Quase sempre remávamos sem cessar, até aportar numa das 18 comunidades escondidas por ali, nos recantos de mangue, nas costeiras do mar, nos matos frente aos baixios, no alto dos morros da Mata Atlântica.
Cada comunidade tem sua via de acesso particular; funcionam como senhas.


Nas comunidades caiçaras, caboclos vivem de modo Rústico, tradicional, alternando pesca, pequena agricultura e caça. Tudo sobre medida, a moeda muitas vezes ainda é a troca, e a extração do solo ou das vidas do mar, funcionam a título de sobrevivência. Tudo na medida certa. Nunca vimos, nestes 17 dias, depósitos armazenando peixes aos quilos, ou mesmo caça.
O que vimos, foram animais de todas as sortes (bugios, pacas, raposas do mato, peixes, raias) dependurados em cima da fogueira que aconchega a casa de fogo, onde os moradores nativos costumam reunir-se, cozinhar e conversar. O dia corre tranqüilo, sossegadinho como dizem eles, enquanto a fumaça defuma a comida fresca, e de quando em quando pode-se chegar nela, arrancar-lhe um pedacinho, comer aos poucos, matar a fome no mato.
Canudal, Guapicum, Poruquara, Vila Mariana, Abacateiro, Saco da Rita, Saco do Morro, Agostinho, Vila Fátima, Caçada, Almeida, Barbados, Varadouro, a morada de Randolfo e a antiga casa de Reza indígena. Estes foram os locais de nossas paradas.
As primeiras comunidades, ainda em mar aberto ou baías relativamente grandes, abrigam comunidades de desenvolvimento mediano para a região, vendem peixe para Paranaguá, costumam ter água correndo em chuveiros , as vezes até elétricos, coleta de lixo quinzenal (quando ocorre), escolas até o segundo grau com transporte marítimo coletivo para alunos e professor, e um fluxo quase que diário a Paranaguá, porto já bastante desenvolvido.
Assim é por exemplo Vila Mariana. Ainda que acessível, a comunidade é bastante carente. Uma das razões, me disse Dona Regina, moradora que nos acolheu em sua casa, é a falta de atividade por conta das leis ambientais que proíbem uma série infindável de atividades ligadas a terra e ao mar, fonte de renda e/ou subsistência daquelas pessoas. Dona Regina, por exemplo, costumava ganhar um pouco colhendo Samambaia na Ilha assim como “veludo” do mato, e catar ostras e peixe nas temporadas. A ostra ainda vale a pena, vez em outra, apesar de estar diminuindo bastante, diz ela, mas as Samambaias, flores e veludos foram proibidos. Os agentes comerciais que costumavam encomendar dos moradores para vender em floriculturas por todo o Sudeste abandonaram o ramo após as restrições ambientais. É um assunto delicado. Biólogos, agro-ecologistas, geógrafos que estavam presentes no nosso grupo de loucos-canoeiros, afirmam ser estas, plantas que nascem e reproduzem-se em abundancia, não havendo para estas espécies risco eminente de extinção com as atividades de extração em pequena escala como era de costume, e da qual vivia Dona Regina por exemplo...

O fato, de modo geral, como vínhamos recolhendo relatos e vivências diversas durante esta imersão no Universo caiçara do litoral Paranaense, é que a criação dos Parques e Reservas, quando muito estritas, perdem a conexão com o Humano que ali vive, viveu e preservou durante todos esses 2000 anos, no mínimo, a biodiversidade da Mata Atlântica.
A preservação da biodiversidade pelas populações tradicionais é uma regra muito clara e simples, pois sem a biodiversidade, está ameaçada a própria existência da comunidade que se alimenta dela. Então existe neste caso, uma inter-dependência fundamental entre preservação ambiental e cultural, que infelizmente vem sendo desrespeitada por parte das instituições ambientais e seus agentes repressores como a Força Verde (policia militar com treinamento de 6 meses especializado no código florestal) alimentadas pelo frenesis nostradamesco ...o fim da natureza e de seu ser...

suas revanches ... catástrofes: o aquecimento global, inundações...a extinção de certas espécies animais e vegetais... a transformação da cadeia alimentar...
É sempre complicado para nós, atores desta empreitada liderada pelo caiçara, pesquisador Renato Siqueira, não apontar o Humano como parte integrante deste grande e poderoso organismo que é a Mata Atlântica, o Mar, o Rio, enfim, a Natureza. É complicado para nós, não perceber que os nativos vêem se organizando politicamente afim de defender a possibilidade de viver enquanto caiçaras em seu ambiente natural, usando a natureza para sua sobrevivência, respeitando-a contudo, pois não há nada mais importante do que ela, para quem não tem o dinheiro e o acúmulo de bens e objetos como meta e meio de vida. Nesta relação de interdependência, a preservação é um ensinamento rígido, necessário.
Criar impossibilidades de troca substancial entre o mato, o mar e o humano, só faz sentido para quem não tem contato direto com a Natureza, para quem vive na ilusão de que eletricidade vem do botão que se aperta na parede de cimento...
É muito contraditório, pois a cidade, seus habitantes e o aparato industrial de sua manutenção são os grandes destruidores da tão amada e temida Natureza, mas como a cidade não saberia nem como viver na Natureza, enxerga o risco eminente, sua fragilidade, e transpõe esta visão de mundo para os nativos, que por sua vez, não entendem como estariam destruindo o que lhes serve de alimento, casa, chão, rua, vias de comunicação e enfim, toda a teia de sua sobrevivência.
Os ciclos naturais ali são respeitados. A preservação é Real e não Teórica. Este é o ponto. Quanto polui um caiçara? Qual a quantidade de CO2 que um nativo emite diariamente? Qual a quantidade de lixo industrial que ele joga? Qual a quantidade de alimento que ele desperdiça? Perguntas simples são a resposta para uma relação de harmonia entre as partes. A Simplicidade há de ser muito respeitada .


A SIMPLICIDADE
Cada pessoa que participou desta viagem, veio em busca de algum tipo de conhecimento associado a sua área de trabalho, pesquisa, missão. Mas, ao longo da viagem, talvez mesmo logo de cara. No primeiro dia : naufragamos a batera, espécie de jangada a remo e vela. As quatro pessoas que remavam nela nadaram na água geladíssima no meio de uma baia desconhecida e sacos, dezenas de sacos com doações de todo tipo, sapatos, material escolar,roupas, agasalhos, boiavam distanciando-se, até que uma das meninas do grupo, Camila, , bióloga marinha, fosse salvar aquelas doações como um peixe, uma mulher do mar. Salvamos muitas delas; presságio de uma viagem na direção do desprendimento absoluto.

Eu mesma perdi todas as minha as roupas, e passei a andar muito feliz e contente, todos os 17 dias, com doações encontradas nos sacos.
O naufrágio, e aos poucos, as horas de remo ( houve dias que remamos 10 horas) no sol, na chuva, de dia, de noite, as casas cada vez mais escondidas, a presença da Mata cada vez mais intensa e gigante, foi levando cada pessoa do grupo a descobrir que fazíamos coletivamente uma meditação sobre a simplicidade e o amor. A Natureza nos inspirou a simplicidade e o amor. E, pude perceber a figura que mais a representou, a figura na qual o grupo viu encarnado estas qualidades do Sublime Silencioso Humilde: foi seu Randolfo Pereira.

Num bracinho de mar, já um Rio, há uma hora ou duas de remo do Canal do Varadouro, dentro do mato, cipós e flores, mora Randolfo Pereira. Sozinho agora, desde que sua esposa faleceu há uns 20 anos atrás e suas filhas mudaram-se. Tem por volta de 67 anos, bem usados, mas o olhar é firme e zombeteiro. Uma sabedoria tranqüila. É irmão de Leonildo Pereira, ícone da Rabeca, mestre do Fandango, morador de Abacateiro, uma comunidade familiar no Canal do Varadouro, 4 horas a remo dali. Randolfo, conta as melhores lendas de Fandango da região...Venho pesquisando o Fandango há algum tempo e nunca conheci um senhor com uma forma tão viva de contar estórias. Apesar de bem “escondido” como falam, ele é um artista Mágico, daqueles que quietos envolvem todo o ar, chamam para dentro de si todos em volta. E cada um de nós, agradeceu muito aquelas horas dentro da Alma do Caboclo .
Contou desta vez, a estória do início do Fandango, pois naquela época tão antiga, não existiam pessoas ainda, apenas bichos em corpos semi-humanos, com braços e pernas. Naquele tempo, os fandangos eram na mata, e juntavam-se todos! Quem tocava o bumbo era o jacaré, a viola o cachorro, a águia o pandeiro, e o macaco tocava Rabeca. Riámos bastante, porque seu Randolfo toca a Rabeca (espécie de violino Rústico), então ele era o macaco, e, nós acabávamos de comer um macaco que defumava em sua casa de fogo. Randolfo fez a piada, a piada no fandango é verso. Assim, nossa visita já era fonte de inspiração para o verso que Randolfo nos emprestava ali. Tocou Sinsara, Don-don, Chamarrita, que são toadas, ritmos do Fandango, e a pedidos tocou uma folia, uma música de reza. Metade do grupo ficou de olhos mareados. Foi bonito, porque a música de reza por vezes arranha o instrumento como um lamento mesmo, como rezadeiras antigas.A Rabeca que em geral é ligeira, alegre, na música de reza, desafina e chora.
No meio de tudo, o macaco que havíamos comido – bicho estranho de mastigar para um civilizado- já ficou mitológico, a ponto que Pedro, estudante de biologia, acordou na madrugada as 3 da manhã, morto de fome, porque a comida tinha sido pouca e a remada longa, para tirar do fumeiro um pedacinho da canela do macaco, acordando a todos que dormiam em volta da fogueira, fazendo assim uma macacada defumada as 3 da madrugada! Seu Randolfo que dormia conosco na casa de fogo, ria e zombava. Tanta zoeira por uma canelinha. Trocadilhos. As palavras ao avesso, fez-se poesia. Nos galhos pular como macacos, nas cordas dedilhar é costurar a teia do som.
Os dias na casa de Randolfo, pela própria presença do artista, foram dedicados ao artesanato natural. Catamos sementes, cipós, madeiras de todas as consistências, penas do galo, e argila. Em volta do artista, cada um tirava uma técnica, uma idéia.

CAÇADA
De Randolfo, a expedição seguiu para a CAÇADA, comunidade na mata do Canal do Varadouro. Como o nome já diz tudo, ali os caiçaras vivem essencialmente da caça. O contato com o mar é via uma trilha de 30 minutos a pé. As espingardas ficam guardadas atrás das portas das casas, e até meninos de 13 anos, já estão prontos para a Caçada. Os homens vão para o mato. Do nosso grupo, Diego, pescador, morador de Superagüi, e, Evair, escultor, pescador, agente político na Ilha das Peças, sobem a mata. Estórias das raposas do mato perdidas, e das onças que espreitavam sem que fossem vistas. Quando voltaram, a Caçada no rosto deles era uma mistura de folia, aventura, adrenalina e conhecimento natural. Um diálogo Possível entre gente e animal.
As mulheres habitam a casa. O espaço da casa é um território mesmo, um bairro, uma cidade. Ficam dentro. Limpam, cozinham, ordenam, observam, analisam, pensam. São as cabeças pensantes de tudo ali construído. De tudo sabido. A professora, a parteira, a avó.
Talvez por nossa presença, somente os homens sentem-se a vontade para caminhar e conversar ao ar livre na tarde de domingo que passamos ali. Talvez somos uma ameaça para as moças e mulheres? ? Isso intrigou porque não longe dali, numa comunidade evangélica chamada CANUDAL, as mulheres nativas eram expansivas e alegres, todas participavam da pesca e pescavam camarão, tainha e o que viesse...
Na CAÇADA, há retidão. Existe uma forma oculta de adoração da Retidão, da Sobriedade, da Distância em relação ao outro.Todos são muito amorosos e acolhedores, mas as paredes invisíveis estão presentes. Será o Vale que os protege?
De manhã e de tarde, houve culto. No meio daquele cenário improvável, casas num pequeno vale da Mata Atlântica, uma igreja da Congregação Cristã no Brasil foi construída num tamanho desproporcional. Com uma arquitetura rígida de influência inglesa ou germânica, ao som dos trompetes, flautas , clarinetes, aquela igreja parecia não pertencer a lugar nenhum. Em outras palavras, a cena era surreal.
Todas as mulheres da Caçada cobrem seus cabelos de índias européias com um véu branco translúcido, e os homens de gravata e terno reúnem-se na Congregação. Não há bares, vendas de cigarros, e nenhum acesso aos vícios legalizados.A Sobriedade é desejada na hora da CAÇADA.

O PRIMEIRO E O ÚLTIMO DIA
Para um certo espanto do grupo, nosso guia Renato Siqueira, logo no primeiro dia em que nos encontramos todos na Ilha das Peças, vindos de diferentes cidades do Sudeste, levou-nos para uma caminhada inicial de boas-vindas e confraternização a um destino surpresa. Caminhamos em bando então, pela areia da praia, por bastante tempo até chegarmos numa pequena trilha que nos levou ao cemitério da Ilha. Não esperávamos uma chegada tão macabra, e aquilo causou em alguns o sentimento de desconforto. Assumimos posturas mais graves apoiados em pedras.
De cara, o sobrenatural foi interpelado como grande Guia atrás da viagem. É estranho, você chegar numa cidade, comunidade, vilarejo para visitar a Vida ali manifesta, e antes mesmo de conhecer os rostos e mãos que costuram aquela realidade, sentar-se em círculo, sobre pedras jogadas, na morada dos Mortos, que um dia viviam aquela paisagem. É estranho, porque o olhar externo, do observador técnico, turístico e mesmo artístico, desloca-se imediata-mente, e começa ali uma jornada no interior de cada um do grupo, através da Natureza, dos Outros, dos outros de nós e do nosso Corpo.


Remar, andar, subir, descer, conhecer, falar, observar, sentir e meditar.


Nesta roda de conversa no cemitério nos apresentamos uns aos outros, falamos de nossos propósitos e projetos com esta jornada que já começava - reverenciando de alguma forma os ancestrais ali enterrados, pedindo proteção e profundidade.
Mais tarde na viagem, paramos inesperadamente numa Ilhotinha- Sambaqui. Ossadas de pessoas, animais marítimos, botos, jarros, objetos, estavam ali sedimentados entre as rochas de concha e restos da areia do mar, formando uma parede de memórias de vidas que passaram por aquelas terras. Um sítio arqueológico sempre me dá a sensação de estar em lugar nenhum. Talvez por serem sempre restos, pedaços de uma história (apesar de ser a nossa), de pertencerem ao nosso Agora de forma estrutural, parecem imunes ao tempo, são brutas porque resistem, são formas simples que remetem a sociedades dificilmente imagináveis, uma dose de fantástico dentro de uma realidade inquebrantável, os possíveis desdobramentos de nós mesmos e de nossas coisas no tempo; nós-dinossauros, nós num futuro mais que distante, nós no Inimaginável..Os Sambaquis tocaram o grupo de forma especial, apareceram como um novo chamado vindo de nossos ancestrais. Além de caiçaras, além de pessoas, o Tempo (será que ele existe?) e suas Energias Atemporais.

Enfim, o ciclo está por fechar, ou re-iniciar, é nosso último dia de viagem de Canoa, saímos umas três da tarde do Saco do Morro, remamos até uma entradinha estreita no Mangue, guardamos as Canoas em lugar seguro, entre as raízes secas, e subimos.
Uma trilha molhada, já um pouco abandonada, nos leva ao pico de uma cadeia de montanhas da Baía. Lá de cima, via-se como serpentes, os braços de mar. Em volta, por todos os lados, a Mata densa respirava como um grande pulmão Verde e Húmido.
Era a vez dos Bugios- macacos do mato- assoviarem, os machos assopram como motores na Floresta. Dizem ser prelúdio para as nuvens carregadas.
Não importa.
Estamos a salvo, no pico desta montanha Imensa, a sós com bichos que não vemos, com raízes que não vemos, com árvores que nos cercam, e a nossa frente, uma grande casa de Taipa abandonada, a parede esquerda desmantelada e a outra por ruir, é a Casa de Reza Tupi-Guarani da Aldeia que ali habitava. Os índios deixaram o local, três anos atrás, espalharam-se por algum pequeno centro urbano, deixaram a Mata para seus ancestrais, a Mata para os ossos e almas dos índios que nunca foram.
Estavam ali, 9 pajés enterrados na Terra sobre a qual a casa fora construída. Dormimos nela. Fizemos fogueira nela. O fogo crescia, diminuía, cantava e emanava suas mensagens secretas; o fogo é uma escola.

Renato vestiu-se com a presença Divina daquele espaço, cantou num dialeto que imagino ser o Tupi-Guarani, algumas pessoas do grupo já ador-meciam em seus sacos, outras conversavam para matar a angústia de estar em lugar tão ermo, outros estavam quietos.
Chamávamos e eles vieram, encarnados em um só, antes Pajé, agora, Cobra preta e amarela, rajada, grande, longilínea, deslizando tranquilamente de cima para baixo na madeira de estrutura da Casa. CANINANA, o Possível espírito do pajé e da forma de nossos ancestrais, nossos avós. Para nos proteger ali, de toda Jararaca, Cascavel, Aranha, Onça, Vento, Raio, ou qualquer outra Intempestividade da Natureza Selvagem, que nos acolheu e abraçou.
Dormimos com a CANINANA entre nós, de bom grado, alguns com medo, receio, mas entregues.
Essa foi a despedida. Antes da cidade.